Quais são os cenários sombrios que o nosso conhecimento da genética pode criar?
Faz sentido tentar antecipar desdobramentos futuros de um novo fato científico ou de uma nova ferramenta tecnológica?
Certamente faz sentido proibir a manipulação genética de embriões humanos antes que todas as consequências desse tipo de manipulação sejam completamente compreendidas. Não podemos arriscar que pessoas com grande chance de sofrer sejam criadas só para alimentar a curiosidade científica.
No entanto, nem todas as antecipações de potenciais riscos fazem sentido.
Nesta edição da newsletter Muito Além do Cérebro, eu falo de algumas previsões de futuros terríveis que são baseadas em interpretações equivocadas de achados científicos. Se você não quer sofrer desnecessariamente, siga aqui na newsletter que vamos desenrolar alguns enganos comuns produzidos pela comunicação científica que subestimam a capacidade das pessoas que não são cientistas de entender os resultados científicos.
Vamos ser processados pelos nossos filhos?
Durante muito tempo, o que prevaleceu como forma de herdar riscos de certas doenças foram as mutações genéticas. Alterações na sequência de DNA que não tinham relação com o comportamento e as escolhas das pessoas que se tronariam pais e avós. Ou seja, o entendimento era de que se o seu avô enfiasse o pé na jaca durante a vida dele, isso não poderia ser herdado geneticamente por você. Claro que você poderia sofrer as consequências do comportamento do seu avô caso isso deixasse sequelas emocionais na sua mãe ou no seu pai e você, de alguma forma, vivesse com eles esse sofrimento. Mas essa não seria uma herança inscrita nas suas células.
Recentemente, esse entendimento foi atualizado quando tivemos notícias, a partir de achados científicos, que, apesar dos genes não carregarem as consequências das farras do seu avô, outros mecanismos biológicos poderiam ser afetados e herdados pelas futuras gerações. Esses outros mecanismos são chamados de epigenéticos.
São muitos os tipos de mecanismos epigenéticos e nem todos são conhecidos ou plenamente compreendidos. A falta de uma compreensão absoluta dos mecanismos epigenéticos, no entanto, não impediu que alguns advogados antecipassem novas formas de litigância.
O simples fato de que encontramos alguns indícios de que o comportamento dos nossos pais e avós pode, de alguma forma, criar heranças epigenéticas, levantou a suposição de que nossos pais e avós poderiam estar sujeitos a processos legais por terem se comportado mal e nos deixado com marcadores epigenéticos que atrapalharam as nossas vidas.
Segundo essa hipótese, se você desenvolvesse diabetes ao longo da vida e isso estivesse associado com o consumo excessivo de alimentos ultra processados, por parte dos seus pais e avós, você poderia processá-los pelo custo financeiro e emocional da sua diabetes. Seria uma versão judicializada e expandida da culpa materna! Estaríamos sujeitos a julgamento até mesmo pelo que fazemos antes de decidirmos nos tornar mães e pais.
Mas aqueles de vocês que têm filhos podem ficar tranquilos: essa suposição é equivocada e baseada numa compreensão errada do significado dos achados científicos.
Primeiro, porque, como eu comentei em alguns parágrafos anteriores, não é nenhuma novidade que podemos sofrer as consequências do comportamento dos nossos pais e avós por vias psicológicas, sociais e culturais. Enquanto não havia um mecanismo biológico conhecido, no entanto, ninguém achou que isso seria motivo para litígio.
Segundo, porque herança epigenética não é um mecanismo do tipo tudo ou nada, no sentido de que carregar uma herança epigenética não garante uma doença. Além disso, marcadores epigenéticos podem ser modificados ao longo da sua vida e você não precisa, necessariamente, conviver com os marcadores herdados sem modificações.
Terceiro, porque a maior parte dos chamados marcadores epigenéticos não é herdada. Nós não sabemos exatamente qual é a proporção ou a relevância dos marcadores que são herdados, mas é claro, pelos achados científicos, que os marcadores herdados são a exceção e não a regra. Logo, não é como se o seu destino fosse definido antes do seu nascimento para uma grande parte do seu funcionamento biológico. Não é tudo que pode ser influenciado pela herança epigenética.
E, por último, sabemos que as condições sociais são muito mais marcantes para o nosso risco de sofrimento físico ou emocional do que qualquer herança genética ou epigenética. Logo, se existe alguém que merece ser processado, são aqueles que prejudicam medidas que visam reduzir as desigualdades sociais, favorecer o acesso à educação e serviços de saúde de qualidade ou reduzir preconceitos e atitudes de discriminação.
Os nossos avós e pais que enfiaram o pé na jaca não são mais culpados pelos nossos eventuais problemas de saúde física e mental do que o contexto social em que vivemos. Por isso, processá-los seria ir atrás do criminoso errado.
E esse não é o único dos futuros trágicos pelos quais não precisamos sofrer, além de estarmos salvos de sermos processados pelos nossos filhos e netos, também não precisamos antecipar um futuro sem diversidade.
Corremos o risco de impedir o nascimento de outros “Bill Gates”?
Esse cenário de futuro trágico envolve a suposição de que poderemos querer evitar o nascimento de pessoas com transtornos do espectro autista. E como exemplo de quem poderia ter sido excluído por ser autista, o empresário Bill Gates é frequentemente mencionado.
Recentemente, abordei a questionável expansão do diagnóstico de transtornos do espectro autista. Nesse sentido, já antecipo que eu acho pouco provável que Bill Gates seja um autista. Porém, muitos defensores do movimento neurodiversidade assumem que Bill Gates é um ótimo exemplo de autista que gostamos de ter entre nós.
Partindo desse princípio (de que Bill Gates seria autista e de que a maior parte de nós o admira), o movimento neurodiversidade usa a figura de Bill Gates para fazer uma solicitação dramática: Proíbam os pais de selecionar os fetos que poderão vir a ser seus filhos pela ausência de risco genético de transtornos do espectro autista! Caso contrário, pessoas extraordinárias como Bill Gates não nascerão mais!
À parte de toda a discussão de se em algum momento todos os embriões serão selecionados antes do nascimento, que já seria uma realidade distópica e futurista um tanto quanto distante, temos um outro fator que torna o desespero dos defensores da neurodiversidade desnecessário.
Não será possível reconhecer embriões com alto risco para o desenvolvimento de transtornos do espectro autista porque simplesmente não existe uma genética que predisponha aos transtornos do espectro autista de forma muito significativa.
Olhando os resultados dos estudos genéticos o que encontramos é que, exceto em alguns casos muito graves de autismo, a composição genética não tem muitos elementos comuns entre todas as pessoas que manifestam sintomas do espectro autista. Além disso, os marcadores genéticos que aparecem nos estudos não podem ser considerados necessariamente prejudiciais e não agem de forma simples e direta para o desenvolvimento dos sintomas.
Ou seja, existe um efeito genético que predispõe ao que chamamos de autismo, mas ele não é um efeito que nos permite antecipar quem terá ou não traços autistas. Portanto, não é possível reconhecer embriões com risco de autismo, exceto em casos raros e extremamente graves de autismo associados a outras doenças neurológicas. Certamente, Bill Gates não estaria entre esses casos raros mesmo se fosse autista.
Portanto, os defensores da neurodiversidade podem ficar tranquilos, porque não seremos capazes de selecionar os embriões com base na ausência de características relacionadas ao autismo e os futuros Bill Gates não serão proibidos de nascer.
Muito Além do Cérebro é um projeto de comunicação científica para que todos possam acompanhar as discussões que acontecem nos bastidores da psiquiatria e das neurociências. Acredito que todas as pessoas devem poder, se quiserem, acompanhar as discordâncias entre profissionais de saúde mental.
Isso não deve enfraquecer a confiança na medicina e nas ciências.
Pelo contrário.
Conhecer o que faz dos médicos e cientistas também humanos pode nos ajudar a entender e criticar as ciências, além de permitir que qualquer pessoa possa participar das decisões quanto ao que investigar e como aplicar os resultados encontrados para melhorar a nossa tão cara humanidade.
Se você se interessa por saúde mental, psiquiatria, psicologia, ciências, ou é só curioso, assine gratuitamente a newsletter para receber este e muitos outros conteúdos.