Existe um cérebro normal?
Eu gosto muito dos escritos da Rosa Montero, uma jornalista espanhola versada tanto nas obras de ficção quanto nos livros documentais. Logo, quando me deparei com um dos seus lançamentos com o título de O perigo de estar lúcida, não resisti. Uma excelente autora, escrevendo sobre loucura e lucidez? Me pareceu como leitura obrigatória no universo da saúde e doenças psiquiátricas.
E o livro é realmente bom. Não sou uma crítica literária, mas dentro do meu universo de experiências de leitura, foi certamente um percurso agradável.
Porém...
Indo além da crítica literária, O perigo de estar lúcida carrega uma armadilha: a ideia de que existiriam pessoas “normais”, com cérebros que funcionam “direito”. Ou seja, quando Rosa Montero fala dos perigos da lucidez, ela supõe que existam pessoas realmente lucidas graças a um bom funcionamento cerebral.
Ela descreve, por exemplo, que se deparou com as teorias do premiado neurofisiologista Eric Kandel e entendeu, a partir desse contato, que as manifestações de transtornos psiquiátricos seriam “uma espécie de falha na fiação neurológica, embora ainda não se saiba se isso pode ser por um defeito genético, por fraturas microscópicas ou alterações nas sinapses (a conexão entre os neurônios).”1
Seguindo a linha de que os sintomas psiquiátricos seriam então “falhas na fiação neurológica”, Montero questiona se seria uma falha cerebral a necessidade quase incontrolável de criar histórias, sentida por algumas pessoas como ela. E se, por um lado, tal falha pode trazer muito sofrimento - a ponto de escritores terem, segundo ela, uma frequência alta de suicídios - por outro, essa mesma falha abre um universo de criatividade capaz de eventualmente construir obras de literatura de valor inestimável.
Em outras palavras, Montero parece acreditar que o seu cérebro e o de muitos outros escritores são anormalmente falhos, mas, mesmo se pudesse, ela não optaria por se curar dessa condição. Montero teme que perder a sua forma de “loucura” representaria uma ameaça a sua capacidade criativa. O que explica o título do livro O perigo de estar lúcida. O perigo aí seria a chatice de uma vida normal decorrente de um cérebro infalível. Por isso, a autora prefere tolerar alguns sintomas de transtornos psiquiátricos decorrentes de seu cérebro falho do que correr o risco de viver uma lucidez anódina.
Montero não é uma cientista, logo, ela se baseia na literatura de divulgação científica de neurocientistas como a espanhola Mara Dierssen, ou os estadunidenses David Eagleman e Elaine Aaron e em conversas com amigos que circulam pelo mundo das neurociências. Claramente, ela não inventou a ideia de que existiriam cérebros “anormais”, que explicariam as manifestações emocionais e criativas. O que ela está fazendo é reproduzir um discurso que permeia as neurociências - mesmo na ausência de evidências de falhas no funcionamento do cérebro de pessoas com sintomas depressão, ansiedade, ou capazes de uma criatividade extraordinária.
Mas essa discussão pode ser muito mais complicada do que autores de divulgação científica como Aron, Dierssen e Eagleman dão a entender. Definir o que seria uma falha cerebral é um desafio por si só. Isso porque o cérebro é um órgão que está sempre sendo modificado e que tem vários graus de liberdade na sua tentativa de responder ao que o ambiente lhe impõe. Como consequência dessa enorme capacidade de variações, cada cérebro é um cérebro. Não existem dois iguais, nem mesmo em gêmeos idênticos.
Como então delimitar a fronteira entre o cérebro normal e anormal?
No caso da neurologia, essa delimitação se dá pela perda de massa cerebral, de função, de conexão, de metabolismo, etc. Mas no âmbito das emoções e da capacidade criativa, a maior parte do tempo, não existem perdas evidentes de massa, função, conexão ou metabolismo. O que existe são inúmeras variações que transitam dentro de um espectro que, para a neurologia, corresponde ao normal.
As teorias de Kandel, Aron, Dierssen e Eagleman, na qual Montero se escora, supõe que pequenas variações do funcionamento cerebral poderiam representar alterações sutis demais para a neurologia, mas ainda assim falhas, erros, defeitos. Esses neurocientistas defendem que em algum momento seríamos capazes de identificar desvios tão sutis que apareceriam só com métodos muito sofisticados, mas que seriam suficientemente intensos para serem entendidos como um funcionamento anormal. Só que encontrar o “erro” nesse contexto suscita diversas questões.
Como definir a fronteira entre o que é esperado dentro de variações individuais inevitáveis e a anormalidade? Como dizer que o normal é não ser criativo e que a é uma anormalidade cerebral que permite que algumas pessoas sejam mais criativas, como parece defender Montero?
A uma certa altura do livro, Montero diz que a existência de estudos com ressonância magnética funcional que mostram que pessoas classificadas como mais ou menos criativas* tem ativações cerebrais diferentes é suficiente para sustentar a hipótese de que a origem da criatividade é uma falha cerebral.2
Só que quando existe muita variação entre pessoas, quando cada cérebro é significativamente diferente de todos os outro, encontrar diferenças de ativação cerebral quando se comparam quaisquer grupos de pessoas pode ocorrer por puro acaso. Para darmos crédito para a relação entre alguma alteração de atividade cerebral e um traço como a criatividade o caminho é longo. Os resultados precisam aparecer consistentemente em estudos de grupos diferentes, e a variação observada precisa ser marcadamente diferente entre os grupos e não só um achado marginal (que explica muito pouco da presença ou ausência de uma determinada característica).
Por isso, a empolgação de Montero com os resultados de estudos com ressonância magnética funcional é prematura. Os achados nessa área são inconsistentes e marginais.3 E, para complicar, a existência de uma associação não indica necessariamente causalidade, o que significa que mesmo que sejam encontradas diferenças cerebrais, elas podem não ser a causa da maior criatividade ou vice-versa.
Além disso, mesmo que exista alguma variação relevante de funcionamento cerebral relacionada à criatividade como dizer que um tipo de variação é correto enquanto outro tipo é um erro? Como definir que a criatividade é fruto da falha de algo e que na verdade o normal é a criatividade ser contida?
Montero parece acreditar, com base em sua experiência pessoal, que pessoas muito criativas funcionam pior do que outras pessoas. Que esquecem mais coisas importantes, devaneiam perigosamente e são menos aptas pra a vida comum do dia-a-dia. Mas mais do que inadaptação, a autora espanhola parece enxergar o potencial prejuízo de ser impelido a constar histórias na associação entre ser escritor como profissão e maior risco de morrer por suicídio. Ela mesma assume, no entanto, que a fonte da informação que ela menciona (de que os escritores teriam 50% a mais de chance de morrer por suicídio do que o restante da população) não pôde ser verificada.
Só que o que existe de mais consistente nos resultados de pesquisas que tentaram relacionar atividade profissional ao risco de suicídio, é que os maiores riscos aparecem associados às atividades mal remuneradas como aquelas de trabalhadores braçais da construção civil e de atividades extrativistas (mineração) e às atividades com alta exposição a agrotóxicos como aquelas de trabalhadores agrícolas.4-6 O que sugere o excedente do risco de suicídio tem uma origem muito mais triste e mundana. No universo dos suicídios, a falta de perspectiva é muito mais relevante do que qualquer excesso criativo.
Por mais que seja até romântico enxergar os escritores como seres atormentados pelos seus cérebros falhos que corajosamente enfrentam seus desvios contando histórias, essa construção está mais para autoficção.
Provavelmente, o cérebro de escritores e escritoras não é especialmente diferente de todos os demais.
Como eu sempre digo, nós seres humanos somos bichos angustiados, e alguma manifestação de sofrimento sempre vai existir. Dizer que o sofrimento é um defeito neurológico corre o risco de nos alienar da experiência humana, além de nos fazer acreditar que é possível ser impecavelmente organizado, estável e produtivo.
Sinto dizer, mas a experiência humana, qualquer que ela seja, é sempre falível. Por isso, definir o que é normal ou anormal não é tão simples quanto parece.
*No caso, Montero usa a expressão pessoas altamente sensíveis (PAS) como definido pela sua autora de referência, a neurocientista Elaine Aron.
Muito Além do Cérebro é um projeto de comunicação científica para que todos possam acompanhar as discussões que acontecem nos bastidores da psiquiatria e das neurociências. Acredito que todas as pessoas devem poder, se quiserem, acompanhar as discordâncias entre profissionais de saúde mental.
Isso não deve enfraquecer a confiança na medicina e nas ciências.
Pelo contrário.
Conhecer o que faz dos médicos e cientistas também humanos pode nos ajudar a entender e criticar as ciências, além de permitir que qualquer pessoa possa participar das decisões quanto ao que investigar e como aplicar os resultados encontrados para melhorar a nossa tão cara humanidade.
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Referências
Montero, Rosa. O perigo de estar lúcida (p. 20). Todavia.
Idem. (p.74)
Poldrack RA, Baker CI, Durnez J, Gorgolewski KJ, Matthews PM, Munafò MR, Nichols TE, Poline JB, Vul E, Yarkoni T. Scanning the horizon: towards transparent and reproducible neuroimaging research. Nat Rev Neurosci. 2017 Feb;18(2):115-126. doi: 10.1038/nrn.2016.167. Epub 2017 Jan 5. PMID: 28053326; PMCID: PMC6910649.
Peterson C, Sussell A, Li J, Schumacher PK, Yeoman K, Stone DM. Suicide Rates by Industry and Occupation - National Violent Death Reporting System, 32 States, 2016. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020 Jan 24;69(3):57-62. doi: 10.15585/mmwr.mm6903a1. PMID: 31971929; PMCID: PMC7367035.
Henn M, Barber C, Zhang W, Staley M, Azrael D, Miller M. Identifying Occupation Groups for Suicide Prevention: A Statewide Data Linkage Study. Arch Suicide Res. 2023 Apr-Jun;27(2):494-504. doi: 10.1080/13811118.2021.2020699. Epub 2022 Jan 6. PMID: 34989315.
Milner A, Spittal MJ, Pirkis J, LaMontagne AD. Suicide by occupation: systematic review and meta-analysis. Br J Psychiatry. 2013 Dec;203(6):409-16. doi: 10.1192/bjp.bp.113.128405. PMID: 24297788.
Que texto reconfortante! Estou com sequelas da COVID, entre elas, cognitivas. Deixei de fazer uma prova hoje porque não consegui memorizar teoremas, axiomas, regras, etc. Estudo Filosofia, e a disciplina é Lógica. Apesar de ter conseguido melhorar meu desempenho nos últimos tempos, Estou me sentindo péssimo por essa falha. Como se todas as outras habilidades que tenho fossem irrelevantes. Às vezes somos mais cruéis conosco mesmo do que com os outros, né? Seu texto me consolou nesse sentido, ao me lembrar que cada cérebro é um cérebro. Obrigado, e abraço!
Que texto maravilhoso, Juliana. Você tem sido uma interlocutora tão presente na minha vida nos últimos tempos.